No mais recente encontro público designado como abertura do ano judicial - como de resto é característico neste tipo de cerimónias - marcou afincada presença a narrativa pantomínica do poder politico pós-moderno, bem como alguns dos outros poderes que o envolvem.
Nos discursos dos vários responsáveis, foram abordadas diversas questões do direito português, a sua necessária reforma (não num sentido contra-legislativo, mas de mudança empírica), e a relevância de uma justiça operante e funcional para a saúde democrática da nossa sociedade. Ou, de resto, de qualquer sociedade pretensamente livre. Palavras presentes nomeadamente nos discursos de Noronha do Nascimento - presidente do supremo tribunal de justiça - denunciando a lógica governamental da destruição de direitos tão justamente conquistados pelo nosso povo e, por consequência, do nosso estado; também de sublinhar Marinho Pinto, bastonário dos advogados, que lembrou as nefastas consequências das reduções previstas de pessoal judiciário neste próximo ano.
Alguns destes protagonistas também afiguraram jogos de palavras e "indirectas", como a Ministra da Justiça (que levantou dúvidas no mínimo interessantes sobre processos de avaliação laboral, nomeadamente dos juízes), o Bastonário da Ordem dos Advogados ou o PR. Sugerindo que, infelizmente, algumas decisões tomadas em questões vitais do nosso país possam estar marcadas pelo crivo de querelas pessoais.
Mas o enfoque desta crónica não é a palavra política, assente em agendas mediáticas cautelosamente orientadas e construídas, que hoje marginaliza a discussão fundamental da prevalência da substância sobre a forma. Dedico-me essencialmente à posição, ou papel, que os media modernos - pelo menos os nacionais - decidiram tomar perante a actualidade política e a relevância das suas "liturgias".
Está sólido e enraizado o acordo tácito, não verbalizado, entre classe política e classe jornalística, desde a maior mediatização das campanhas (nomeadamente a partir da democratização da rádio); e o consequente processo de acompanhamento individual dos seus principais protagonistas. O jornalista submete-se, por vontade própria, a um certo acriticismo, uma postura cordial e concordante, assim conquistando alguma fé por parte de uma classe política encrustada - necessariamente conservadora -, que lhe permite o acesso a mais informação (embora estrategicamente doseada).
Algures neste processo, a classe jornalística - mais nomeadamente o pack journalism, que acompanha todos os eventos políticos mediáticos em directo - desistiu de questionar, de verdadeiramente questionar. Olvidou-se da importância de colher perspectivas, sejam elas directas ou dedutivas. A informação passou a chegar a conta-gotas, servindo principalmente agendas partidárias; e hoje, o exercício desta nobre profissão dedica-se quase exclusivamente à perpetuação de uma narrativa, construída pelos próprios políticos, sem que lhe seja acrescentada qualquer conflitualidade ou verdadeira dúvida. A objectiva do repórter foca-se nos acontecimentos (encontros de líderes, polémicas pessoais, declarações públicas e soundbytes) em detrimento de ideias, propostas, do teor das leis e reformas aprovadas.
Tomemos como exemplo a intervenção externa e a austeridade estabelecidas no nosso país, que actualmente ocupam boa parte da imprensa escrita e informação televisiva. A sua narrativa força-nos a aceitar condições que nos são impostas de fora, sob pena de, caso não as cumpramos, desabar todo o mundo (financeiro e mais qualquer coisa) sobre nós. A inevitabilidade e o medo. Os jornalistas questionam quem propõe: "as pessoas andam insatisfeitas. não teme tumultos?" e, a quem se opõe, "qual é então a alternativa? Não vivemos acima do que podíamos?". Nenhuma destas questões entronca no que é essencial à democracia e à busca da verdade, ou seja, a substância das mudanças.
Para os jornalistas parece importante, por exemplo, confrontar Pedro Passos Coelho com alegadas desavenças provenientes de Belém. E logo de Cavaco Silva, que esteve na origem
das últimas eleições e, consequentemente, deste governo; passando-lhe um cheque em branco para a austeridade. A memória é curta. E parece mais útil questionar Cavaco S. sobre o valor da sua pensão de reforma - que, diga-se, nem é sequer escandalosa -, em vez de procurar a sua opinião sobre pensões e salários médios dos portugueses. Dos desníveis de rendimento, que afundam os mais pobres perante ricos cada vez mais ricos. Ou ainda a falência de todo um sistema de apoios, que anuncia a breve trecho o fim da segurança social como a conhecemos.
Não deixa de ser um exercício interessante observar toda a polémica gerada em torno deste assunto, que atingiu os limites do verosímil quando, na última quarta-feira à noite a rtpi, estação pública de televisão, dedicou uma hora a escrutinar as desavenças Passos/Cavaco, para no fim concluir que tudo está bem e feliz. A presente situação é embaraçosa para o PR e força-o, das duas uma: a entrar em conflito directo com o governo (que, bem sabemos, Cavaco não fará), ou vir a terreiro assegurar as almas inquietas que, em Belém, tudo está calmo e cordato. Invoco também as inconvenientes críticas de Pedro Rosa Mendes na RDP1 ao regime tirano de Angola, e ao triste espectáculo televisivo na RTP - promovido por Miguel Relvas -, Prós e Contras: especial Angola. Está criado o clima para o unanimismo. Para o "quem não está connosco, está contra o país".
Será tudo isto mais relevante do que oportunamente apresentar os inúmeros factos económicos que nos indicam, com um elevado grau de certeza, que o caminho de recessão escolhido por este executivo é apenas uma rota mais prolongada para a ruína económica? Que o próprio PM
afirmou, na "longínqua" campanha de 2011, que o caminho da subida de impostos seria insustentável por razões de quebra de receita, hoje óbvias para todos? E o que resta perguntar à oposição, que partilha culpas por há décadas não atingir compromissos estáveis? Que tal indagar a esquerda sobre as dificuldades de sustentação deste modelo social num ocidente envelhecido?
Convém ainda aos jornalistas - regressando à cerimónia de abertura do ano judicial de 2012 - confrontar Paula Teixeira da Cruz sobre as acusações que lhe fez Marinho Pinto, ou vice-versa. Aqui assistimos à criação da narrativa de confrontação; a troca de acusações pessoais que torna a história mais sumarenta. Em vez de - num ano de profundos cortes - se questionar a ministra sobre: a) como pode uma justiça já em sofrimento sobreviver com a austeridade que lhe é
proposta pelo governo? b) entende que a austeridade deve ser aplicada sem olhar a meios, de uma forma cega, atingindo por igual as àreas que necessitam efectivamente de contenção (e existem-nas), e aquelas que estão deficitárias em recursos, como é o caso da justiça? Ou, por exemplo, perguntar a Marinho Pinto se os negócios dos grandes escritórios de advocacia, que lucram anualmente milhões com pareceres e estudos duvidosos, encomendados por sucessivos governos, não é escândalo de igual proporção aos que frequentemente anuncia? Ou que a ordem dos advogados, liderada pelo próprio, barra deliberadamente o acesso ao emprego dos jovens licenciados em direito, protegendo os actuais associados desta organização laboral?
Perante este paradigma, somos nós, cidadãos, os principais responsáveis pela alteração da perspectiva mediática que temos da realidade. Julgar de uma forma mais crítica, profunda e completa, não cedendo a simplismos narrativos. Mas a classe jornalística assumirá sempre um papel decisivo, conseguindo (ou não) desbravar caminho para que todos estejamos mais e melhor esclarecidos.