quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A grelha e o directo

O meu ímpeto de proto-comentador desportivo toma conta em certas ocasiões. Quando explode a polémica no mundo do futebol, então aí sucede-se ensurdecedor disparar de comentários e oposições.
Como é sobejamente conhecido nos meandros da televisão, nomeadamente da informação televisiva, a transmissão em directo, ou "a urgência do directo" tomam inúmeras vezes o lugar dos programas previamente agendados, pelos quais muito boa gente aguarda (e em pleno direito, já que lhes foi garantida essa transmissão por uma grelha pré-existente) todos os dias. Ora, o directo inverte tudo isto. Correndo o risco de passar por ultra-polémico, e de ser acusado da leviandade de preterir a relevância da corrente situação política e económica nacional para um mero programa semanal de comentário desportivo, venho manifestar o meu desacordo e desagrado para com o ocorrido na passada noite de terça-feira, 26 de janeiro, noite essa em que a RtpN decidiu, ao contrário do programado - e mais uma vez refiro-me à tal "grelha" cujo principal propósito será fidelizar os telespectadores - transmitir um especial noticioso em directo. Razão? O ministro das Finanças do governo português, Teixeira dos Santos, está finalmente a preparar-se para anunciar as linhas gerais do orçamento de estado para 2010. Começo pelo talvez questionável horário do sucedido. Que o orçamento deste ano teria que passar pelo buraco da fechadura (ou seja, pela abstenção à direita), isso já esperávamos. Mas uma apresentação rasca em power point às 23:30 da noite?! Sinceramente, senhor ministro... Compreendo o embaraço de Portugal chegar ao fim do primeiro mês do primeiro ano desta nova década sem um orçamento aprovado, mas seria tão importante assim lançá-lo na Terça, mesmo que claramente fora de horas e sendo a grande maioria da informação transmitida quase irrelevante? "Procurámos enquadrar os dados do crescimento com as expectativas da UE"... ; "a principal prioridade do governo será o desemprego e o combate ao défice orçamental"... A única informação de facto relevante em todo este debacle será a revisão da dívida pública, para 9,3% do PIB. Terá provavelmente ocorrido ao ministro que as chatices e as perguntas seriam reduzidas a pouco ou nada se a apresentação se realizasse a uma hora em que de facto todos os presentes só desejavam regressar a casa para o (tão merecido) descanso. 
Regressando então à questão inicial, em que o canal noticioso RTPN transmitiria hipotéticamente, das 22.30 às 00.00 desta Terça-feira o programa de comentário desportivo Trio de Ataque. De facto, o que ao invés sucedeu foi um especial de informação que durou mais de uma hora, com o único intuito de encher chouriços até que o ministro falasse. Os comentadores do costume, os comentários de sempre - "menos estado" "despesismo" etc etc... - já estamos fartos de saber. E de tudo o que o ministro disse, das 23.30 à meia noite - tempo que durou a sua apresentaçãozinha - reti de útil o valor revisto do PIB, que poderia ter sido facilmente comentado e escalpelizado no jornal da meia-noite da mesma RTPN, meio precisamente indicado para a actualização noticiosa e no qual o directo faria todo o sentido. Em vez disso, tivemos um "especial informação" (que não sei bem o que teve de especial nem sequer de que insidiosa novidade me terá informado) durante a duração virtual do programa desportivo. 
Toda esta conjugação de acontecimentos leva-me à simples conclusão que a estação pública de televisão trata a informação como entretenimento, que degrada a importância de uma grelha para a imposição de um directo que de si é muitas vezes empobrecedor (normalmente o directo é uma combinação de pedaços em que um jornalista "in loco" procura descrever a situação corrente, não passando de uma série de gags, soudbytes e observações situacionistas e irrelevantes - lembremo-nos dos directos nas noites eleitorais antes de se saberem os resultados sufragados). Embora a política tenha uma relevância social ainda maior que a do desporto (e estou a pesar devidamente as palavras), um programa de hora e meia agendado para discutir o grave clima de suspeita e de "jihad" que se vive no futebol português é util e de grande interesse. Programa este ainda protagonizado por algumas figuras muito importantes no universo clubístico e até com alguma influência nas respectivas direcções (talvez à excepção de António-Pedro Vasconcelos, uma figura um pouco mais marginal ao regime de LF Vieira), que será porventura mais útil que uma emissão com os mesmos noventa minutos, na qual ao fim de oitenta e poucos, há um senhor que afirma "afinal vamos rever o valor do défice em alta para 9,3%".
Com o seu magnífico anúncio, o ministro das finanças português conseguiu mais uma vez captar
a atenção mediática dos "pack journalists", fazendo uma apresentação noctívaga e madrugadora do seu orçamento para um ano que já começou. E mais uma vez este governo prova-se como "media savy", sabendo melhor que ninguém criar uma notícia - que à falta de melhor conteúdo,
acaba por ser justificada num especial informativo de uma hora que precedeu o pseudo-acontecimento. 

Sem comentários: