domingo, 21 de outubro de 2007

...Amnesiac?

Atempadamente, e seguindo o barulho blogosférico que o recente lançamento de "In Rainbows" acendeu, propus-me a reavaliar essa histórica banda que são os Radiohead. Sim, presentes 15 anos de experiência, sentimo-nos tão dignos de admirar Thom Yorke como Jim Morrison ou Nick Cave. O singular e introspectivo rapaz que nos fala em dor e cansaço, desilusão e sofrimento, parece investido, no entanto, em fazer-nos crer na salvação. E cada novo disco dos Radiohead prova esse renascimento, erguendo-nos da mais desesperada profundeza à ligação com a dita essência. E Yorke explora este conceito de uma forma biblicamente meticulosa.

Não se trata este artigo, no entanto, de um louvor ao último trabalho desta banda (embora certamente ele mereça tal empenho), mas um relembrar do que já foi e continua a ser um marco para os Radiohead. Não "Kid A", que com os seus múltiplos méritos sonoros e poéticos poderia preencher uma obra surrealista. Também não relembro "Ok Computer", embora admita que este merece contemplações regulares e activas (esta última porque não controlo os próprios movimentos quando Thom Yorke uiva "Uptight", em "Subterranean Homesick Alien"). Ficam de fora "The Bends" e "Hail to The Thief" álbuns um pouco abaixo - hesito e não garanto subscrever o uso da anterior expressão - ainda assim dignos de grande empatia. Esqueço "Pablo Honey" por razões óbvias. Não censurando, considero-o uma fraca demonstração do potencial da banda. Dedico-me, por exclusão de hipóteses, à (re)descoberta de Amnesiac.


Por um largo período residiu a minha crença na distância milenar pendente entre Ok Computer e os restantes discos dos Radiohead. Não tinha ainda ultrapassado a multitude sónica, complexa e perfeita das fundações deste disco. A insistência em Kid A (e a óbvia recompensa daí advinda) permitiu-me chegar a Amnesiac, que me provou recentemente ser par dos seus dois antecessores. Sabendo que todas as músicas neste disco foram gravadas aquando de Kid A, não lhes retira qualquer mérito terem sido guardadas para posterior edição, concretizada pouco tempo depois. Em Amnesiac o ecletismo é omnipresente, e cada canção parece tirada de um sombrio sonho com adereços só possíveis em fantasias.

A primeira melodia ("Packt' Like Sardines..."), seca e desiludida (não uma desilusão), anuncia o tom electrónico e o compasso moody, características que serão constantes ao longo do disco. Sabemos imediatamente que se avizinha uma viagem atribulada ao negrume da alma do autor, e confirma-se a suposição quando ouvirmos "You think you drive me crazy" sussurrado num intimista tom de choro, ecoando na suspeita calmaria que antecede a tempestade em "You And Whose Army?". No meio estão "Pyramid Song", deliciosa balada em contratempo, debate eterno entre piano e bateria - possivelmente suplantado pela deprimida e bela voz de Yorke descrevendo uma descida às profundezas do seu ser- ; e "Pulk/Pull...", uma viagem ao passado , aquele dos beats de Aphex Twin e do Underground londrino dos anos 90. Uma sugestiva sucessão à faixa de abertura, insistindo ainda na cultura electrónica.
Segue-se "I Might Be Wrong", a perfeita transição para a segunda fase do disco, uma mais insistente nas guitarras e nos desafios existencialistas à luz da sociedade moderna. Esta canção pode ser interpretada como uma antologia do que os Radiohead conquistaram até então (e, possivelmente, até do que veio a ser consolidado mais tarde), unindo com precisão matemática as várias sonoridades experimentadas, criando um épico confronto entre o idealizado e o concretizado, o rock e a música electrónica.
"Knives Out" enfatiza a ideologia supramencionada e oferece-nos guitarra suficiente para compensar as omissões deste instrumento em outras faixas. Thom Yorke, entretanto, persegue ratos (ou outros animais de cérebro diminuído) dentro de sótão alheio, procurando cozinhar o passado que deseja olvidar. "Morning Bell" relembra Kid A, embora numa versão melhorada: sentimos que quase podemos saborear aquela doce melodia, que lentamente nos carrega para uma discreta mas embaladora apoteose. "Dollars And Cents" é o momento "Ok Computer" de "Amnesiac". A revolta (contida) apodera-se de todos - banda e ouvintes - e sente repulsa pelos paranóicos andróides, que não falam nem pensam senão em dinheiro. "Hunting Bears", instrumental curioso, não parece corresponder à fasquia herdada dos muitos pontos altos de "Amnesiac". Garante, afortunadamente, dois minutos de calmaria reflectiva, essenciais à recuperação de energias mentais e auditivas, para poder assim apreciar devidamente duas das melhores músicas deste álbum: "Like Spinning Plates" e "Life In A Glasshouse".


A primeira destas, inevitável e imediata viagem sensorial configura em seu contexto um tom de pré-despedida, pós-Kraftwerk, pós-ambiente, (quase cavernosa na sua batida em inversão e berrante em pleno uso do sintetizador) ao que se sucede uma epifania final - original homenagem a Angelo Badalamenti, o senhor compositor do Twin Peaks e derivados de outros devaneios Lynchianos. Inicia-se então o último capítulo com inclinação electrónica. "Life In a Glasshouse", delírio jazzístico e vagamente kurt-weilliano anuncia o desgaste que traz a paranóia, último suspiro de um louco em queda, para sempre observado e destruído ("Well of course I'd like to stay and chew the fat (...) Only there's someone listening in"), desejando sobreviver aos vícios letais e incessantes pequenas amarguras que a existência absorve dia após dia.


Não queremos porém esquecer-nos deste singular álbum. Tal invulgaridade é atestada pela maturidade ironicamente severa dos Radiohead, presente em cada pequena revolução sónica. Neste caso são onze. Existe no trabalho do conjunto uma lição musical essencial, que deveria estar presente, através de papel gasto e escrevinhado, no manual teórico de todas as bandas que ultrapassam a marca do terceiro disco: nunca desistir, enquanto músico e criativo, de provocar os atrofiantes limites dos géneros musicais impostos. Amnesiac suporta o teste do tempo e arranca-lhe uma consistência invulgar, provando-se como uma peça de antecipação - Radiohead antes de muita electrónica, Mr. Thom Yorke antes de Mr. James Murphy e Mr. Win Buttler. Antes, também, de Kid A?

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